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Sou autor da minha própria história?

Uma vez atendi uma cliente que procurou a terapia para lidar melhor com sua vida profissional. Vou reproduzir um dos nossos primeiros diálogos. Ela se queixou:

– Você já pensou como será difícil eu me tornar uma referência na minha área de atuação?

Então, lhe perguntei:

– Para você é importante ser uma referência na sua área?

A jovem deu uma risada muito espontânea e me respondeu com um tom de muita certeza:

– Não!

A partir desse momento, começamos a discutir sobre vários aspectos que interferem nas nossas expectativas, desejos e escolhas. E serão essas reflexões que vou compartilhar aqui um pouco com vocês.

Primeiro: parece muito fácil sabermos do quê gostamos ou o que é prioridade para nós, não é mesmo? Mas, será que é tão simples assim? Estamos imersos em uma cultura que estabelece vários indicadores de realização profissional e pessoal. Ser aprovado em um curso universitário com status social como, medicina e engenharia, casar e ter, preferencialmente, dois filhos, sendo uma menina e um menino e conquistar um alto posto no trabalho – essas são algumas das medidas. Tudo bem algumas pessoas desejarem essas vivências e se sentirem realizadas com elas, mas, o que pretendo refletir aqui é quando reproduzimos essas metas sem que elas façam sentido para nós.

Minha querida cliente me explicou que para ela o importante na profissão seria se desenvolver continuamente e perceber o impacto positivo de seu trabalho na vida de outras pessoas. Era isso que lhe importava, independente de ser considerada uma profissional de destaque em seu campo de atuação. Ela avaliou que quando descrevia que seu desejo era ser uma referência na área, estava mais atenta ao que era valorizado no grupo social que fazia parte e pouco conectada aos seus sentimentos.

Vamos refletir sobre esse ponto com a ajuda da arte. Manuel de Barros escreveu esses lindos versos:

“ (…) que a importância de uma coisa não se mede com fita métrica nem com balanças nem barômetros etc. Que a importância de uma coisa há que ser medida pelo encantamento que a coisa produza em nós”.

Leia esses versos e preste atenção nas emoções e pensamentos que ele evoca e propicia para você. Uma reflexão possível é exatamente a mencionada acima. Nosso contexto cultural e social nos coloca várias métricas da suposta vida ideal, por exemplo: a quantidade de publicações no currículo lattes, curtidas nas redes sociais, número de filhos, quantidade de amigos e o peso corporal. Nem sempre fomos ensinados a identificar o quê nos faz bem, pois, para isso, precisamos desenvolver algumas habilidades, como a de estar presente aos nossos sentimentos, emoções e vivências.

Entre as práticas culturais desse nosso momento histórico está a famosa correria, uma aceleração constante que costumeiramente nos afasta de nós mesmos. Acabamos nos engajando em comportamentos e metas que não vão necessariamente nos levar aos lugares que verdadeiramente queremos chegar. Mais uma vez a arte pode nos ajudar a pensar. Leiam esse trecho do texto de Paulo Mendes Campos, trata-se de uma crônica onde um pai presenteia a filha, Maria da Graça, com um livro e lhe faz algumas recomendações sobre como é a vida adulta:

“Os homens vivem apostando corrida, Maria da Graça. (…) São corridas tão confusas, tão cheias de truques, tão desnecessárias tantas vezes, por caminhos tão confusos, que, quando os corredores chegam exaustos a um ponto costumam perguntar: “A corrida terminou! Mas quem ganhou?”. É ridículo, minha Graça, disputar uma corrida se a gente não conseguirá saber quem ganhou. Portanto, se tiveres de ir a algum lugar, não te preocupe a vaidade de ser a primeira a chegar. Se chegares sempre aonde queres, ganhaste.”

Bem…, então, será que basta nos conhecermos bem que sempre teremos essa sensação de estar ganhando e um mundo de felicidade constante se abrirá à nossa frente? Sabemos que não e, na psicologia, essa discussão sobre o que nos faz bem e nos dá prazer faz parte de uma discussão mais ampla sobre os valores. Ser autor da própria história e comprometido com os nossos valores muitas vezes implica em lidar com sentimentos difíceis. Para nos aproximarmos de uma vida com sentido, precisamos ter a coragem de fazer escolhas, mudar comportamentos, falar alguns ‘nãos’ e todo esse processo também nos inunda de sentimentos como tristeza, frustração e medo. E eles fazem parte e podem ser ótimos professores!

Gosto muito de ler sobre histórias de vida de pessoas que souberam lidar com sentimentos difíceis para poderem experimentar a vida que, para elas, valia à pena. Na psicologia, consideramos que uma forma poderosa de aprendizado é por meio de modelos. Em seu livro, Prólogo, ato e epílogo, Fernanda Montenegro descreve uma passagem muito interessante de sua vida, como foi desafiador negar dois convites para assumir o Ministério da Cultura. Ela descreve o desafio em frustrar as pessoas que tinham a expectativa de seu sim, mas, tinha muita convicção que gostaria de permanecer nos palcos, já que para ela, era por meio da arte que poderia ajudar a melhorar o seu país.

Lina Bo Bardi nos presenteia com um modelo interessante também. Ela foi uma arquiteta italiana que morou muito tempo no Brasil e nos brindou com vários projetos arrojados, entre eles, o MASP (Museu de Arte de São Paulo). Leia o que ela fala sobre essa sua empreitada:

“(…) Eu procurei, no Museu de Arte de São Paulo, retomar certas posições. Não procurei a beleza, procurei a liberdade. Os intelectuais não gostaram, o povo gostou: ‘Sabe quem fez isso? Foi uma mulher!”.

Nessa fala, Lina demonstra como estava com o seu autoconhecimento fortalecido, pois, para ela, projetar um espaço público que refletisse a liberdade era mais importante do que agradar os intelectuais. Imagino que era desconfortável receber críticas dos colegas, mas, Lina estava conectada com seus valores.

Identificar o que nos faz bem é descrito na psicologia comportamental como o repertório de descrever o que é reforçador para nós. A identificação e desenvolvimento desse repertório é um dos primeiros passos em todo processo terapêutico e, é o ponto chave em alguns tratamentos com forte validação científica, por exemplo, a depressão. Então, segue aqui o convite para nos conectarmos ao que nos faz bem, pois, como disse Paulo Mendes Campos: “se tiveres de ir a algum lugar, não te preocupe a vaidade de ser a primeira a chegar. Se chegares sempre aonde queres, ganhaste.”

*A cliente foi consultada e autorizou a referida citação, foram tomados os devidos cuidados éticos no sentido de preservar a identidade da mesma.

Sobre a autora:

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Dra. Alessandra Salina Brandão

Alessandra Salina Brandão – Psicóloga clínica, especialista em terapia comportamental e cognitiva pela USP-SP e doutora em psicologia pela USP-RP. Gosta de descomplicar a psicologia e busca, por meio de seus textos, contribuir para que um número maior de pessoas tenha acesso ao conhecimento científico dessa área.

2 comentários em “Sou autor da minha própria história?”

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