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O mundo amanheceu irreconhecível

Gosto muito de uma citação do autor Paulo Mendes Campos que se encaixa perfeitamente a esse momento desafiador que passamos por conta da pandemia do COVID-19:

“Não te espantes quando o mundo amanhecer irreconhecível. Para melhor ou pior, isso acontece muitas vezes por ano. ‘Quem sou eu no mundo?’ Essa indagação perplexa é o lugar comum de cada história de gente. Quantas vezes mais decifrastes essa charada, tão entranhada em ti mesma como os teus ossos, mais forte ficarás”.

Nem diante dos meus pensamentos mais catastróficos eu imaginava que o mundo amanheceria irreconhecível nesse nível: vivemos uma pandemia sem precedentes na história mundial atual. Mesmo que de formas diferentes, esse fato mudou a rotina de todos nós: alguns trabalham de casa e se dividem entre as tarefas domésticas e as do trabalho formal, outros ficaram sem emprego e sem renda, outros têm o desafio de enfrentar o tédio.

Constantemente ouvimos recomendações importantes para esse momento: isolamento social, higienização das mãos, da casa, dos alimentos. Mas…, e como fica a nossa saúde mental? Existe um caminho para cuidarmos das nossas emoções nesse contexto?

Os pesquisadores Ornell, Schuch, Sordi e Kessler publicaram um artigo no mês de março de 2020 no Jornal Brasileiro de Psiquiatria, com uma revisão de recomendações embasadas cientificamente. Para o âmbito individual eles destacaram:

  • limitar o contato físico com outras pessoas, porém evitando o distanciamento emocional;
  • ponderar o impacto coletivo de nossas ações;
  • limitar o tempo de exposição às notícias relacionadas à pandemia, pois o excesso de informações pode desencadear quadros de ansiedade e,
  • prestar atenção nas próprias necessidades e sentimentos.

E é sobre esse último tópico que vou discutir aqui um pouquinho com vocês.

É a partir da observação do que acontece dentro de nós que podemos organizar nosso ambiente e fazer escolhas que tragam calma, bem-estar ou tolerância para os episódios difíceis. Nesse momento de pandemia recebemos muitos conselhos sobre como passar por esse período de isolamento da melhor forma possível. Mas, a estratégia que funciona para o seu amigo pode não ser muito eficaz para você ou para mim, inclusive pode aumentar nossa ansiedade.

Algumas pessoas se tranquilizam assistindo e fazendo lives sobre assuntos de seu interesse, pois minimizam o isolamento social ao se perceberem parte de um coletivo; outras se acalmam por meio do silêncio, leituras e conversas com amigos íntimos; outras ouvindo suas músicas favoritas. E, às vezes, uma alternativa pode nos fazer muito bem em um momento e não tão bem em outro. Assim, o primeiro passo é a conexão com nossas necessidades e sentimentos.

Os exercícios de mindfulness, também recomendados no artigo de revisão de Ornell e colaboradores, caracterizam-se como uma ótima estratégia para essa conexão com nossas sensações e emoções. Mindfulness é traduzido como atenção plena e podemos praticar essa habilidade selecionando um estímulo interno como a respiração ou os batimentos cardíacos e direcionando nossa atenção para esses eventos por um tempo. Outras variações desses exercícios incluem a observação de nossas reações corporais e emocionais, de uma forma curiosa, sem julgamentos.

Desse modo, a partir desses exercícios de auto-observação podemos constatar, por exemplo, que estamos cansados e precisamos de um tempo em silêncio ou, notar que estamos com saudades de nossos amigos íntimos e que será ótimo fazer uma chamada de vídeo para vê-los.

Assim, mesmo nesse momento desafiador, podemos encontrar brechas possíveis para vivermos de acordo com nossos valores. Se para você um valor importante é cultivar uma relação de afeto com seus amigos, cuide desse objetivo usando os recursos tecnológicos; se busca ser mais gentil com você mesmo (um valor que sugiro que seja incorporado por todos nós), pegue mais leve quando notar que não conseguiu manter seu planejamento de exercícios físicos para a quarentena.

Uma prática cultural que até se intensificou nesse primeiro momento de pandemia foi a exigência de sermos produtivos e até superarmos o ritmo de trabalho e estudos que tínhamos antes do isolamento: essa auto exigência pode ser um fator de risco para nossa saúde mental, gera uma sensação de nunca estarmos sendo ou fazendo o suficiente, um contexto que costuma desencadear muitas reações de ansiedade.

Analisando a citação de Paulo Mendes Campos à luz da psicologia, podemos concordar com sua afirmação de que, quanto mais conseguirmos decifrar a charada sobre quem somos nós nesse mundo, mais fortes nos tornaremos. Pois, a partir do autoconhecimento, poderemos ter ações mais coerentes com o que precisamos e com o que vale à pena para nós.

Sobre a autora:

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Dra. Alessandra Salina Brandão

Alessandra Salina Brandão – Psicóloga clínica, especialista em terapia comportamental e cognitiva pela USP-SP e doutora em psicologia pela USP-Ribeirão Preto. Gosta de descomplicar a psicologia e busca, por meio de seus textos, contribuir para que um número maior de pessoas tenha acesso ao conhecimento científico dessa área.

2 comentários em “O mundo amanheceu irreconhecível”

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