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Como acolher uma pessoa enlutada?

Dentre as muitas dores provocadas pela dimensão da pandemia de COVID-19 no Brasil, está o número significativo de mortes e, consequentemente, de famílias e amigos enlutados pela perda de entes queridos. Boa parte de nós tem se perguntado no último ano: “Como faço para acolher um amigo ou familiar enlutado?”. “O que posso fazer diante de uma experiência tão delicada para alguém importante para mim?”.

Essa dúvida é muito compreensível. Nossa cultura ocidental evita discutir sobre a finitude da vida, o que contribui para não aprendermos a lidar com esse tema. Normalmente, não sabemos olhar para nossas dores e para a dor do outro. A área da psicologia que estuda esse assunto orienta, inicialmente, o respeito à expressão emocional da pessoa enlutada, pois, para cuidarmos de uma dor, primeiro precisamos reconhecê-la e vivê-la, como exemplifica a médica Ana Claudia Arantes:

“No momento extremo da dor, vem a tristeza, o choro, o desespero, a raiva. Todos esses sentimentos devem ser aceitos e experimentados. (…). Não existe nada de errado em ficar triste, pois a tristeza é uma experiência necessária para todo processo de luto saudável. Apesar de vivermos sob uma falsa impressão de que temos que estar sempre sorrindo e felizes, não é proibido ficar triste. Se as pessoas à nossa volta nos cobram demais a superação, entendamos que elas sofrem por nos ver sofrer. Como não sabem estar ao nosso lado durante essa fase, e como não sabem como reagiriam se estivessem no nosso lugar, lutam com todos os argumentos para tirar a nossa dor da frente”. (p.187).

E como seria colocar esse conhecimento em prática, demonstrando acolhimento a uma pessoa enlutada sem ir pelo caminho usual e nada produtivo dos comentários: “pare de chorar tanto!”, “a pessoa falecida não iria querer te ver chorando”, “essa raiva não te fará bem”?.

Um trecho do livro “A máquina de fazer espanhóis”, de Valter Hugo Mãe, traz um exemplo delicado e sensível sobre essas interações. Trata-se de um diálogo entre o personagem principal, Senhor Silva, um homem que passa a morar em um lar de idosos após o falecimento de sua esposa, e o seu enfermeiro Américo, que se destaca pela postura amável e compassiva:

(…) eu queria mesmo era ir ao cemitério, não sei, ver como aquilo é afinal. Não é que não saiba. Mas não sei como é depois de lá ter a minha Laura (…). Porque a sua morte me aterroriza. não passa, Américo, não passa. A morte dela não passa. O Américo esperou uns segundos porque me acalmasse. Procurou um silêncio limpo como uma folha muito limpa onde pudesse escrever uma frase mais digna e disse: um dia essa saudade vai ser benigna. A lembrança da sua esposa vai trazer-lhe um sorriso nos lábios porque é isso que a saudade faz, constrói uma memória que nós nos orgulhamos de guardar, como um troféu da vida. (pg 91).

Neste trecho do livro, observamos que Silva expressa uma emoção difícil, ele está se sentindo aterrorizado e não sabe lidar com a presença dessa dor, “ela não passa”. Américo não interrompe essa expressão de dor de Silva e nem o corrige. O enfermeiro descreve o processo de luto para seu paciente, explica que um dia a lembrança da sua esposa também lhe trará um sorriso nos lábios e fica ao seu lado neste momento de dor.

Um livro de contos, “Espinhos e Alfinetes”, de João Anzanello Carrascoza, aborda o tema luto e nos ajuda a refletir sobre como acolher essa dor. O autor passa pelo assunto mencionando perdas reais e simbólicas, descrevendo desde a perda de pessoas que faleceram até a perda da infância. Em um de seus contos, intitulado Alfinete, Carrascoza apresenta a interação de um pai e seu filho pequeno diante do falecimento da mãe. Segue um trecho:

“Quando voltei à sala, ele mirava a rua pela janela, a mochila às costas, em silêncio. Eu sabia que a saudade o feria como um alfinete. Podia tocá-la com a mão, mas não tinha o poder de retirá-la. No carro, apesar de conhecer o caminho, ele olhava tudo como se pela primeira vez , e era a primeira vez que tudo se mostrava a ele – e a mim, sem ela. (…). Quem vem me buscar?, ele perguntou, revelando a verdade que o desordenava por dentro. Agora serei sempre eu, respondi. (…) Tínhamos tanto a aprender, era só o nosso primeiro dia.” (pag. 91-92).

Nesta citação, notamos o comportamento do pai de validar tanto a sua dor quanto a do filho. Ele reconhece que o menino tinha um sofrimento que o feria como um alfinete e compreendeu que ambos iriam precisar de tempo para se reorganizar e aprender a lidar com a ausência da mãe. Não vemos neste trecho uma postura de acelerar o processo ou impaciência do pai diante da própria dor e sofrimento da criança.

Para algumas pessoas, talvez a dor da perda sempre as a acompanhará, mas é possível ter um luto saudável, por meio do qual o enlutado poderá reorganizar a sua vida e se conectar ao ente querido por meio do amor existente na relação. A médica Ana Cláudia nos auxilia com mais um modelo de acolhimento:

“O enlutado jamais será privado das lembranças e dos sentimentos. O amor não morre com o corpo físico. O amor sempre permanece. Se você perdeu ou está perdendo alguém que ama muito, faça esse exercício. Enumere o que aprendeu e, em seguida, relembre dias muito engraçados com aquela pessoa. Medite sobre as risadas altas que essas lembranças desencadearão. (…). Tudo pode morrer, exceto o amor. Só o amor merece a imortalidade dentro de nós”. (pag. 188-189).

Espero que este texto possa contribuir um pouco com essa tarefa difícil para a maioria de nós, que é a de acolher alguém que perdeu um ente querido. Tendo como base as reflexões dos autores Holman, Kanter, Tsai e Kolenberg, em seu livro sobre “Psicoterapia Analítica Funcional”, destaco uma última sugestão: todos nós temos a capacidade de perceber a autenticidade do outro diante de um diálogo e a pessoa que você deseja confortar perceberá seu desejo honesto de ajudá-la. Se fizer sentido para você, fale o quanto se importa e que está ali para ela, mesmo se sentindo inseguro diante de uma tarefa delicada. Seu ente querido perceberá que você está verdadeiramente envolvido e preocupado e, certamente, se sentirá acolhido com sua presença.

Sobre a autora:

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Dra. Alessandra Salina Brandão

Alessandra Salina Brandão – Psicóloga clínica, especialista em terapia comportamental e cognitiva pela USP-SP e doutora em psicologia pela USP-Ribeirão Preto. Gosta de descomplicar a psicologia e busca, por meio de seus textos, contribuir para que um número maior de pessoas tenha acesso ao conhecimento científico dessa área.

2 comentários em “Como acolher uma pessoa enlutada?”

  1. Sempre tão sensível, Ale! As pessoas às vezes têm medo da tristeza, mas ela é uma visita, ora inconveniente, que vem e vai embora, para que a dor do luto fique de um tamanho “carregável”, de modo a honrar a memória de quem se foi e permitir que quem ficou continue, cuidando de si dos demais! Cuidemo-nos, com carinho!

  2. Esse foi o texto mais bonito que li sobre o luto. É preciso paciência, que infelizmente algumas pessoas não entendem. Eu sofri com o luto e com a ansiedade de pessoas ao meu redor de que exigiam que eu superasse aquilo tudo rápido demais.
    Parabéns pela sensibilidade.

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